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Moradores das periferias falam sobre a visibilidade trans em SP

Quatro pessoas trans contam suas relações com o lugar onde moram e como enfrentam o preconceito e a invisibilidade

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Caê Vasconcelos
São Paulo | Agência Mural

Desde 2004, o dia 29 de janeiro se tornou um dia de luta para pessoas trans no Brasil. Na ocasião, um ato nacional lançou a campanha Travesti e Respeito, que marcou a luta contra a transfobia no país.

No entanto, quase duas décadas depois, ainda há muito a avançar. Pessoas trans que vivem nas periferias de São Paulo contam que fugir da violência, física ou verbal, faz parte de suas rotinas.

A Agência Mural conversou com quatro delas sobre a luta por humanidade e respeito na capital.

'Aqui é o melhor lugar do mundo'

O ator e roteirista Leo Moreira Sá, 63, se identifica como homem trans. Nascido em São Simão, uma pequena cidade no interior paulista perto de Ribeirão Preto, ele veio para São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, aos 11 anos, antes de morar na capital.

Em 2015, foi acolhido em uma chácara em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, e sentiu que a sua vida foi revolucionada. Decidiu, então, alugar uma casa na região e transformar o bairro em lar.

"Percebi que aqui estava em paz. Como dependente químico limpo há 16 anos, encontrei o equilíbrio que eu precisava. Aqui é o melhor lugar do mundo como artista."

Ator e roteirista Leo Moreira Sá, 63, adotou Parelheiros como lar - Karime Xavier/Folhapress

Mas a entrada no mundo da arte foi por acaso. No começo dos anos 2000, Leo foi preso por tráfico de drogas. "Aquilo foi o maior trauma da minha vida. Nunca fui criminoso, mas fui viver a vida do crime."

Ao sair da prisão, em 2009, ficou sem emprego e apoio. Foi quando a arte o encontrou.

"Eu ganhei uma bolsa que era um protótipo do programa Transcidadania [de empregabilidade para a população trans]. Quando eu vi 'teatro e música' tive que certeza de que deveria fazer."

Leo começou na primeira peça como iluminador, mas logo foi fazer parte do elenco do espetáculo. "Considero que a arte me resgatou, me salvou. A arte salva vidas trans, eu sou testemunho vivo disso."

Sua melhor performance artística até hoje, conta, foi como baterista da banda de punk As Mercenárias.

Leo viveu em São Bernardo no momento em que os movimentos dos trabalhadores ganhavam força e o regime militar vivia os últimos momentos. Assim, aos 18 anos, decidiu fazer ciências sociais na USP (Universidade de São Paulo).

Lá iniciou leituras, diz, que o ajudaram a lidar com a transgeneridade, que já estava em sua vida desde o começo. Ele diz que, desde sempre, já sabia que era um homem trans.

"Toda a minha infância eu fui lido como um moleque, mas no primeiro dia de aula minha mãe colocou uma sainha. E a transfobia começou no primário", lembra.

Essa luta por mais espaço e representatividade não acaba, ele avalia.

"Não via artistas transmasculinos. Fiquei seis meses trocando emails com o Daniel [Veiga] para montar o coletivo", diz sobre a criação do Cats (Coletivo de Artistas Transmasculines), projeto ao lado de outros artistas para vencer a invisibilidade.

'A arte sempre foi um refúgio'

Quem também escolheu a arte para mostrar sua potência foi a performer Pedro Galiza, 25. Cria do Jardim Damasceno, no distrito da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, Galiza se identifica como pessoa não binária e vê o cenário artístico como um refúgio.

"Nunca me vi fazendo nada na minha vida que fosse em ambientes formais ou acadêmicos. Eu fui entender a arte como um lugar em que podia ter liberdade, onde pudesse ser e pudesse explorar ser", diz Galiza, que atua com dança independente e performances.

Desde a infância, afirma, começou a perceber como a sociedade enxergava pessoas trans. "Era uma criança bastante afeminada, bastante rechaçada na rua."

Também foi nessa fase da vida que começou a sofrer transfobias. "Muitos bullyings e muita violência também, não só física, mas ofensas", recorda.

Pedro é performer e morador da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, e teve apoio da família
Pedro é performer e morador da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, e teve apoio da família - Arquivo Pessoal

Afirmar a identidade trans na arte, para Galiza, é quebrar a forma como a cisgeneridade enxerga o fazer artístico. "É muito mais amplo do que as determinadas caixinhas, é muito mais acolhedor. Hoje eu me sinto com mais extensão artística para fazer as coisas."

Diferentemente de boa parte das pessoas trans, Galiza sempre teve acolhimento em casa.

"Eu tenho uma relação muito tranquila. A gente tem que fazer uns acordos pela idade dos meus pais, sem muita informação. É mais a convivência do dia a dia. Minha mãe foi percebendo o meu corpo, a maneira com que eu me posicionava. Então ela começou a me dar as roupas dela para eu usar", conta.

Por outro lado, a periferia, para Galiza, não foi tão acolhedora assim. "Eu não encontrei comunidade aqui dentro. Nunca me escondi, mas precisei me resguardar."

'Me descobrir salvou a minha vida'

Já para o poeta Kairos de Castro, 29, organizador do Transarau e morador de Ermelino Matarazzo, na zona leste de São Paulo, a vivência foi o oposto. Kairos se identifica como não binário e não tem uma boa relação com a família, mas encontrou na periferia um lugar de afeto e acolhimento.

"Quando eu estudava não tinha outras pessoas LGBTs, eu sentia muita solidão aqui no meu bairro. Por isso acabei vivendo mais no centro, por causa do trabalho", relembra. Na pandemia, porém, ao ficar em casa, mudou sua visão em relação a viver no bairro como pessoa trans.

Kairos é poeta e morador de Ermelino Matarazzo. Para ele, a arte ajudou a superar a depressão
Kairos é poeta e morador de Ermelino Matarazzo; para ele, a arte ajudou a superar a depressão - Arquivo Pessoal

Em 2014, depois de ler um texto sobre transgeneridade no Facebook, Kairos se descobriu trans. "Eu sentia que a minha única função na vida era ajudar as pessoas, e que eu, como indivíduo, não existia", relembra.

"Quando eu me descobri trans, veio toda uma redescoberta de mim mesmo. Eu descobri que o que eu sentia não era uma coisa aleatória, não era estranho. Me descobrir em 2014 salvou a minha vida."

Assim como Galiza, a arte salvou Kairos da depressão, mas por meio da escrita. "Eu comecei a escrever com 9 anos. Mas tinha muita depressão, achava que ia morrer com 18 anos e não planejava muito. Eu me aliviava escrevendo", conta.

Em 2017, Kairos conheceu a Dominação, uma batalha de rima que fica na região do metrô São Bento, no centro da capital. Ali foi a primeira vez que ele viu pessoas trans recitando rimas.

"Me senti muito inspirado e vi que era possível estar dentro da arte", resume.

'O cuidar faz parte de mim'

No caso da professora Anally Loureiro, 36, morar na Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, foi o caminho para mudar a percepção que tinha na cidade natal, Itapeva, no interior paulista.

Anally se identifica como mulher trans e foi aceita pela família, mas percebeu o clima de hostilidade.

"Foi daí que decidi vir para a cidade grande, já que todo mundo falava que aqui as coisas seriam mais fáceis. Eu queria evitar que a minha família virasse chacota por minha causa", diz. "Mas minha família toda me aceita, sou muito privilegiada."

Apesar da expectativa, quando chegou à capital, em 2008, as coisas foram difíceis. "Com o tempo as pessoas foram vendo que eu merecia respeito. Mas, no centro, eu me sinto melhor, as pessoas me olham diferente. Não sei o que acontece na periferia que acabamos virando piada."

Anally veio do interior para São Paulo. Mulher trans, ela é professora e defende que as escolas abordem a transexualidade
Anally veio do interior para São Paulo; mulher trans, ela é professora e defende que as escolas abordem a transexualidade - Arquivo Pessoal

A carreira de professora veio por inspiração da mãe, que já ensinava crianças no interior. "Eu cresci fazendo trabalhos voluntários em escolas e aí criei o gosto, decidi fazer o magistério. Trabalhei com outras coisas, mas a educação está no sangue. O cuidar faz parte de mim. Cresci admirando o trabalho que a minha mãe fazia."

Na pandemia, Anally perdeu o emprego na creche onde era professora, mas sonha em voltar. "Sou apaixonada pelo cuidado com as crianças. Nasci para a educação."

Ela diz acreditar que a grande mudança do mundo está justamente nas crianças. Por isso, para ela, temas como transgeneridade devem ser tratados ainda na infância. "Deveríamos trabalhar o tema para crianças, de uma forma leve."

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