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    Entenda como são feitas as investigações de uma nova doença neurológica

    Distúrbio misterioso que provoca perda de memória, prejuízos na fala, alucinações e mudança de comportamento tem intrigado médicos canadenses

    Investigação de uma nova doença tem início a partir da coleta de evidências de pacientes que apresentam sintomas em comum
    Investigação de uma nova doença tem início a partir da coleta de evidências de pacientes que apresentam sintomas em comum Foto: Getty Images

    Lucas Rocha, da CNN, em Sâo Paulo

    Uma doença cerebral misteriosa tem intrigado médicos no Canadá. Já são pelo menos seis mortes e 48 casos registrados na província de New Brunswick. Os pacientes têm apresentado sintomas semelhantes aos da doença de Creutzfeldt-Jakob, que provoca distúrbios no raciocínio, perda de memória, prejuízos na fala, falta de coordenação de movimentos musculares e tremores. Os relatos incluem, ainda, alucinações e mudança de comportamento.

    Segundo um comunicado do governo local, os primeiros casos foram identificados no início de 2020. Os testes realizados deram negativo para a doença de Creutzfeldt-Jakob, o que deu início à investigação de um novo distúrbios neurológicos. Entenda quais são os passos que podem levar ao esclarecimento do mistério.

    Uma doença rara e fatal

    Para investigar o surgimento de uma nova doença, primeiro é preciso descartar a hipótese de que se trate de alguma já conhecida. Neste caso, a suspeita inicial era de que se tratava da doença de Creutzfeldt-Jakob, uma enfermidade neurodegenerativa fatal, que afeta o sistema nervoso central, causada por agentes infecciosos chamados príons.

    Os príons são partículas formadas por proteínas encontradas nas células do sistema nervoso dos seres humanos e de outros mamíferos. Em condições normais, a proteína príon celular (PrPc) não causa danos ao organismo. Ela exerce diversas funções fisiológicas, como a proteção dos neurônios contra a morte celular.

    No entanto, por razões que ainda não são totalmente esclarecidas, essas proteínas podem apresentar erros durante a sua formação. Esses erros levam a alterações na estrutura da proteína, que se torna infecciosa e tóxica.

    “Em condições de doença, a proteína passa a formar agregados que são infecciosos. Eles podem então pular de um neurônio para outro, levando-os à morte. Quando o neurônio morre, há uma perda de massa cerebral”, explicou Sérgio Ferreira, professor dos institutos de Bioquímica e Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

    Cerca de 85% dos casos são esporádicos, afetam geralmente pessoas entre 55 e 70 anos, com uma incidência de 1 ou 2 casos para cada 1 milhão de habitantes. Entre 10 e 15% acontecem por mutação hereditária no príon. Ocorrências também raras foram registradas em consequência de procedimentos cirúrgicos e por meio do uso de instrumentos contaminados.

    De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2005 e 2014, foram notificados no Brasil 603 casos suspeitos da doença de Creutzfeldt-Jakob, sendo que 55 foram confirmados, 52 descartados, 92 indefinidos e 404 tiveram a classificação final ignorada ou em branco.

    Rápido agravamento é uma das características da doença de  Creutzfeldt-Jakob

    A doença neurológica grave apresenta uma rápida evolução e, de forma inevitável, leva o paciente à morte. Os sintomas são variados e podem ser caracterizados por aspectos relacionados à demência progressiva, que pode ser associada a espasmos musculares involuntários, chamados tecnicamente de mioclonias.

    “A partir do início dos sintomas, a doença pode levar à morte em pouco mais de um ano. Infelizmente, não existe tratamento específico, nem cura, por enquanto. O que pode ser feito são apenas cuidados paliativos”, explica o neurocientista da UFRJ.

    Segundo Ferreira, a doença de Creutzfeldt-Jakob é muito rara e não existem evidências de contágio de uma pessoa para outra. “Ainda não temos certeza sobre o que dispara a doença. Sem saber o gatilho, não há como falar em medidas de prevenção”, explicou Sérgio.

    Diversas hipóteses buscam explicar a ocorrência dos erros na formação da proteína que levam ao desenvolvimento da doença. “Mutações podem ocorrer, fazendo com que ela não ‘dobre’ direito, ocasionando defeitos na fabricação.

    A proteína da célula pode ser modificada por radicais livres, estresse oxidativo, interação com metais pesados – são várias hipóteses. Não se sabe de algo que possa favorecer a doença, como alimentação ou estilo de vida”, diz o neurocientista.

    O diagnóstico pode ser realizado a partir de diversos exames, incluindo testes no sangue e a análise do líquor (fluido corporal produzido pelo cérebro, que também está presente na coluna).

    O neurocirurgião e neurocientista do Hospital das Clínicas de São Paulo, Fernando Gomes, apresentador do quadro Correspondente Médico, do jornal do Novo Dia, da CNN, explica que uma característica específica da doença permite o diagnóstico por imagem: a destruição celular provoca danos no tecido do cérebro que deixam o órgão com aspecto esponjoso.

    “A doença de Creutzfeldt-Jakob tem alguns critérios já bem estabelecidos, como a evolução para uma demência rapidamente progressiva, uma lesão cerebral que acaba evoluindo e diagnosticada de forma bem clara nos exames de ressonância magnética e de encéfalo, além de ter alguns padrões motores”, disse Gomes.

    Relação com a doença da vaca louca

    A doença de Creutzfeldt-Jakob possui uma variante (vDCJ) chamada Encefalopatia Espongiforme Transmissível Humana (EETH). A doença é transmitida principalmente pelo consumo de carne e produtos bovinos contaminados com a Encefalite Espongiforme Bovina (EEB), conhecida popularmente como doença da vaca louca.

    A doença da vaca louca ganhou visibilidade nas décadas de 1980, quando houve um surto no Reino Unido, e 1990, quando foram registrados os primeiros casos da variante de Creutzfeldt-Jakob em humanos. O primeiro caso no mundo de provável transmissão sanguínea da variante foi confirmado pelo Reino Unido e teve como causa a transfusão de sangue por um doador infectado que não apresentava sintomas.

    Segundo o Ministério da Saúde, nenhum caso da variante de Creutzfeldt-Jakob foi confirmado no Brasil. O agravo já foi registrado em países como Reino Unido, França, Irlanda, Itália, Canadá e Estados Unidos.

    A investigação de uma nova doença

    A investigação de uma nova enfermidade tem início a partir da coleta de evidências de pacientes que apresentam sintomas em comum. “Antes de mais nada, é necessário juntar mais de um caso, com uma observação clínica que seja diferente dos já conhecidos de doenças prévias, para levantar suspeitas de que estamos diante de uma doença diferente”, explicou o neurocirurgião Fernando Gomes.

    Segundo Gomes, no caso das doenças neurológicas, os primeiros passos incluem avaliações clínica e do cérebro, exames de imagem, como ressonância magnética de encéfalo, análise do líquido cefalorraquidiano (líquor), assim como a avaliação da atividade elétrica cerebral, realizada pelo exame de eletroencefalograma.

    O pesquisador da UFRJ, Sérgio Ferreira, explica que o próximo passo é a descrição da evolução clínica da doença desde os primeiros sintomas apresentados pelo paciente. “É importante entrevistar os familiares e as pessoas próximas para tentar entender os primeiros sinais, as primeiras manifestações de alteração, como na memória, no comportamento, na fala ou na capacidade de compreensão. Depois, tentar mapear e descrever o caminho desenvolvido”, disse.

    De forma associada a esse inquérito, os médicos realizam o chamado diagnóstico de exclusão, ou seja, eliminam da lista possíveis doenças que possam causar sintomas parecidos. O lapso de memória, por exemplo, um dos sintomas da doença de Creutzfeldt-Jakob, também é comum em doenças como o Alzheimer, que também é neurodegenerativa, e a aterosclerose, uma doença vascular.

    Após a exclusão das doenças com quadros clínicos semelhantes, os pesquisadores podem explorar o campo dos biomarcadores. “Marcadores biológicos da doença podem mostrar se há alguma alteração no sangue, por exemplo. Algum fator que se possa medir que aponte alterações importantes”, explicou Ferreira.

    As investigações também incluem a busca por fatores de origem externa, como os agentes ambientais. A intoxicação pode ter como fonte substâncias tóxicas, o uso de inseticidas e poluentes que podem atingir o solo e o abastecimento de água.

    Segundo Fernando Gomes, existe a possibilidade de que os casos registrados no Canadá sejam uma nova variação da doença de Creutzfeldt-Jakob. No entanto, a confirmação dependerá da análise dos achados e do comportamento dos pacientes. “Para isso, a medicina conta com diversos recursos, como a avaliação genética, molecular, celular e de neuroimagem, além da avaliação bioquímica do líquor e do padrão elétrico de funcionamento cerebral”, conclui.