• Paulo Gratão
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A região boêmia da Vila Madalena, em São Paulo, ganhou uma cervejaria com uma proposta diferente. O Torneira Bar, criado pelo casal de empreendedores Danielle Lira Edmundo, de 30 anos, e Christian Montezuma, 46, nasceu com a proposta de ser um espaço que valorize a diversidade e a inclusão. Tanto que uma das premissas dos fundadores, que são cisgênero (pessoas que se identificam com o sexo biológico), foi que 100% do quadro de funcionários fosse composto por profissionais trans e não binários.

Danielle Lira Edmundo e Christian Montezuma (ao centro, sentados), fundadores do Torneira Bar, com a equipe. Leonardo Guedes (no canto direito) é o gerente da casa (Foto: Divulgação)

Danielle Lira Edmundo e Christian Montezuma (ao centro, sentados), fundadores do Torneira Bar, com a equipe. Leonardo Guedes (no canto direito) é o gerente da casa (Foto: Divulgação)

O bar abriu as portas em setembro do ano passado, com seis funcionários. Um deles é Leonardo Guedes, de 26 anos, que é o gerente da casa. Ele conta que o trabalho surgiu como uma nova chance, pois tinha acabado de sair de um longo período de recuperação de um problema de saúde mental. “Foi uma virada de página na minha vida.”

Guedes trabalha na área de vendas e atendimento ao público desde os 15 anos. Ele conta que já passou por outras empresas e que não enfrentou grandes dificuldades no processo de contratação, por ter passabilidade (quando a pessoa LGBTI+ consegue ser vista como heterossexual ou cisgênero pela sociedade), mas convivia com comentários, piadas e perguntas invasivas sobre sua vida privada no ambiente de trabalho. “Às vezes a piada nem era sobre mim, era com uma travesti, mas eu obviamente me sentia incomodado. Por toda a experiência que eu tenho, a inclusão nessas empresas é apenas para preencher requisitos. Não há uma preocupação, de fato, com a pessoa.”

A convivência com colegas de trabalho trans e não binários no Torneira Bar ajudou Guedes a criar uma rede de apoio. “Não é todo dia que nos sentimos seguros para sair de casa, principalmente se não tem essa passabilidade. A mortalidade entre os nossos é muito alta. Temos medo, precisamos de um apoio.” Ele conta que esse suporte já foi importante para alguns de seus colegas no Torneira. “Um colaborador teve crise de pânico de não conseguir sair de casa. Ligamos, tranquilizamos e nos colocamos à disposição para que ele viesse e nós o acolheríamos. Sabíamos pelo que ele estava passando.”

A dona do Torneira Bar, Danielle, diz que a ideia da cervejaria surgiu em 2018, quando ela e Montezuma passaram a se interessar pelo mercado e decidiram estudar as possibilidades. Os dois moravam no Rio de Janeiro, ela trabalhava em um banco e ele como advogado. No ano seguinte, o casal resolveu que teria um negócio no ramo, mas com uma proposta diferente do que já era oferecido pelo mercado.

Ambiente do Torneira Bar: espaço amplo e clima praiano (Foto: Divulgação)

Ambiente do Torneira Bar: espaço amplo e clima praiano (Foto: Divulgação)

Como uma mulher negra, Danielle queria usar suas próprias experiências negativas para projetar um ambiente acolhedor para quem não se sentia bem em tap houses tradicionais. “Sentimos necessidade de montar um negócio que fosse inclusivo, acolhedor e seguro, visto que a maioria dos bares e eventos de cerveja não trazem a inclusão desse público”, explica a empreendedora.

Por razões pessoais, eles precisaram se mudar para São Paulo. O casal escolheu o ponto, priorizando um ambiente amplo e arejado, e estava com tudo pronto para o início das obras em março de 2020. Com o início da pandemia, resolveram segurar o processo, que só foi retomado em junho de 2021. “Não fazia sentido abrirmos um bar com 2 mil, 3 mil mortes por dia. Vai contra tudo que queremos defender aqui”, diz Montezuma. Assim, o Torneira Bar abriu as portas no último mês de setembro.

Durante os meses que antecederam a inauguração, eles pesquisavam sobre diversidade e inclusão e perceberam que o maior gargalo no acesso ao mercado de trabalho estava entre o público LGBTI+, principalmente entre as pessoas trans. “Colocamos isso para dentro. Queríamos um quadro 100% de pessoas trans e não-binários. Contamos com o apoio na divulgação de vagas pela Transempregos”, diz Danielle.

De acordo com o Mapeamento de Pessoas Trans na cidade de São Paulo, elaborado pelo Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec), em parceria com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo (SMDHC) e a Coordenação de Políticas LGBTI, o índice de informalidade no mercado de trabalho entre as pessoas transgênero chega a 58% – entre travestis, sobe para 72%.

O Torneira Bar recebeu mais de 600 currículos para as sete vagas anunciadas. Depois de uma triagem, chegaram a 26 entrevistas. “Sentimos que teríamos uma bela surpresa. Muitas histórias, muitas pessoas competentes. Cada um com seu jeito, seu estilo, sua forma. Essa vivência com eles nos abriu muito a mente e nos ajudou a entender as dores deles, as necessidades, o que eles passam.”

O Torneira Bar é uma cervejaria com proposta de diversidade e inclusão em São Paulo (Foto: Divulgação)

O Torneira Bar é uma cervejaria com proposta de diversidade e inclusão em São Paulo (Foto: Divulgação)

Danielle e Montezuma são sommeliers de cervejas – ele também possui certificação como mestre em estilos. O Torneira Bar é uma cervejaria descontraída, com um grande quintal, espreguiçadeiras e um “chuveirão”, remetendo a um clima praiano. A casa ainda oferece programação cultural e tem um DJ residente, o DJ Ian Valentin, que é um homem trans paraibano, radicado em São Paulo.

De acordo com o casal, o motivo para abrir um local com a proposta de diversidade em um bairro distante dos locais com maior frequência do público LGBTI+ em São Paulo é “ocupar espaços e trazer a nossa mensagem para todos os locais”. “Não vou negar que sentimos um pouco de dificuldade de trazer essa nossa proposta para a região, mas o feedback que recebemos das pessoas que conhecem e voltam faz tudo valer a pena”, diz Danielle.

Fundadores e equipe do Torneira Bar, em SP: 100% da equipe formada por pessoas trans e não binárias (Foto: Divulgação)

Fundadores e equipe do Torneira Bar, em SP: 100% da equipe formada por pessoas trans e não binárias (Foto: Divulgação)

Maite Schneider, co-fundadora da Transempregos, explica que as empresas precisam passar por uma preparação, que inclui a leitura de duas cartilhas, antes de ter as oportunidades de emprego anunciadas pela consultoria. No ano passado, foram anunciadas 4.204 vagas e 797 profissionais foram contratados, um crescimento de 11% em relação a 2020. Tecnologia (24,9%) e Varejo (7,8%) foram os setores que mais contrataram em 2021. Marcas como Google, Grupo Pão de Açúcar e Uber estão entre as parceiras.

De acordo com Schneider, o Torneira Bar faz parte de um grupo de empresas que se posicionam para ajudar a diminuir o déficit empregatício existente na comunidade trans. Também ajuda a propagar essa prática por meio de cultura e informação. “A empresa entende que além da empregabilidade, que já é extremamente importante, ela quer mudar o mindset e ajudar a acelerar essa mudança no mundo”, diz.

Dos novos cadastros recebidos pela Transempregos no ano passado, 38,21% têm graduação, mestrado ou doutorado. O levantamento do Cedec com a SMDHC aponta que 37% das pessoas trans e travestis na cidade de São Paulo têm o ensino médio completo.

Para aumentar esse contingente, a SMDHC menciona o programa Transcidadania, como forma de estimular a empregabilidade por meio dos estudos. O projeto, criado há dois anos, concede uma bolsa de R$ 1,2 mil para pessoas trans matriculadas na rede pública de ensino, além de apoio psicológico, assistência social, reforço escolar, cursos e oficinas de capacitação. Em 2020, o número de vagas foi ampliado de 240 para 510, de acordo com a secretaria.

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