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'Não toque em meu companheiro' resgata memórias de greve histórica, em retrato político-social do país

Documentário de Maria Augusta Ramos aborda consequências do neoliberalismo e sugere paralelos entre discursos de Collor e Bolsonaro
Trecho do filme 'Não toque em meu companheiro', da diretora Maria Augusta Ramos Foto: Divulgação
Trecho do filme 'Não toque em meu companheiro', da diretora Maria Augusta Ramos Foto: Divulgação

O tempo é uma linha sinuosa em “Não toque em meu companheiro”. No novo documentário da diretora Maria Augusta Ramos — disponível nas plataformas de streaming Now, Oi Play, Vivo Play, FilmeFilme e Looke —, passado e presente se entrelaçam (e propositadamente se embolam) para compor um panorama sobre determinadas consequências de políticas neoliberais nas relações trabalhistas no Brasil.

Responsável por títulos como “Juízo” (2007), sobre a rotina de um Tribunal de Infância e Juventude do Rio, e “O processo” (2018), voltado para os bastidores políticos da deposição da ex-presidente Dilma Rousseff, a diretora agora lança luz para um episódio pouco conhecido na história do sindicalismo brasileiro.

Em 1991, diante da demissão de 110 bancários em São Paulo, Belo Horizonte e Londrina após uma greve nacional da categoria, funcionários da Caixa se mobilizaram, em diversos estados do país, para pagar os salários dos colegas. A ação descontou 0,3% na folha de pagamento de cerca de 35 mil trabalhadores solidários ao movimento, e perdurou por mais de um ano, até que todos fossem recontratados pela empresa.

Bancários que fizeram campanha por greve nacional e ato solidário em 1991 se reencontram no filme 'Não toque em meu companheiro' Foto: Divulgação
Bancários que fizeram campanha por greve nacional e ato solidário em 1991 se reencontram no filme 'Não toque em meu companheiro' Foto: Divulgação

O fato serve de pontapé para a narrativa que sugere reflexões abrangentes, com viés crítico, sobre temas como privatização de bancos públicos, capitalização da previdência e individualização das negociações trabalhistas, algo enfocado com um olhar que parte da contemporaneidade — “Não toque em meu companheiro” foi rodado há menos de um ano, em agosto de 2019.

Embate de gerações

Ao promover o reencontro de tais trabalhadores envolvidos com a campanha que dá nome ao filme — e trazer à tona depoimentos recentes de Marilena Chauí, professora de filosofia na Universidade de São Paulo (USP) —, o documentário traça um paralelo entre os programas de governo adotados por Collor, no início da década de 1990, e pelo presidente Jair Bolsonaro. Como em outros longas da cineasta, o que sobressai na tela é o retrato histórico-social de certo período a partir da análise de um momento específico.

— Olho o passado para compreender o futuro e ter uma ideia do que a gente quer hoje enquanto sociedade. Vale a pena relembrar o que determinados discursos nos trouxeram. Eles apontam para o mito de que o mercado é virtuoso e dará conta de nossas mazelas, como pregava o governo Collor com o enaltecimento de um Estado mínimo. Mas isso é uma falácia — ressalta Maria Augusta. — Não dá para colocar os fatos embaixo do tapete, porque as consequências disso à democracia são nefastas. Infelizmente, uma parcela da população perdeu a capacidade de se solidarizar. É como se o cidadão não fosse mais tratado com dignidade, mas como uma coisa.

Não à toa, uma das passagens de maior voltagem no documentário acontece quando a diretora põe em contato trabalhadores que participaram da histórica paralisação em 1991 e jovens bancários atualmente empregados na Caixa. Fica evidente a resistência dos funcionários de hoje em aderir a articulações em prol de causas coletivas. “Se os sindicatos não se atualizarem nas maneiras de se comunicar e representar os que estão aí agora, a tendência é eles irem minguando até deixarem de existir”, constata um dos jovens bancários. “A gente está num momento em que não temos tempo de perguntar se seu colega está bem ou com algum problema. E a gente vai deixando isso passar, e ficamos individualistas”, acrescenta outra jovem.

Jornal antigo publicado por bancários, no filme 'Não toque em meu companheiro', da diretora Maria Augusta Ramos Foto: Divulgação
Jornal antigo publicado por bancários, no filme 'Não toque em meu companheiro', da diretora Maria Augusta Ramos Foto: Divulgação

O embate entre diferentes gerações de uma mesma categoria sublinha, de forma implícita, a seguinte questão: num cenário de crescente “uberização” do trabalho, em que se propaga a ideia de que cada indivíduo é empreendedor profissional de si mesmo, uma classe tão vasta de trabalhadores estaria apta a se organizar em solidariedade a outros colegas, como fez há quase três décadas?

— Um documentário é indiscutivelmente a visão de um diretor. Mas não faço filmes para defender teses, e sim porque determinado assunto me comove, me angustia — afirma a diretora, que será tema de uma mostra na Cinemateca de Toulouse, na França, em outubro. — Acho que o cinema é grande o suficiente para pensar a realidade, mesmo quando trata do passado. Aliás, precisamos de mais documentários no Brasil para nos debruçarmos sobre nossas memórias e elaborarmos alguns traumas. E também para que a história não se repita. A história ruim, digamos assim.