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Com os pés no chão: como a pandemia mudou a vida de seis profissionais do turismo

De piloto de avião a tripulante de navio, trabalhadores do setor falam sobre os altos e baixos dos últimos 12 meses
Passageiros em quarentena a bordo do navio de cruzeiros Diamond Princess, em Yokohama, no Japão, em fevereiro de 2020 Foto: ATHIT PERAWONGMETHA / REUTERS
Passageiros em quarentena a bordo do navio de cruzeiros Diamond Princess, em Yokohama, no Japão, em fevereiro de 2020 Foto: ATHIT PERAWONGMETHA / REUTERS

Março de 2020 persiste como uma sombra entre os profissionais do turismo. Pouco mais de um ano atrás, a pandemia do então novo coronavírus foi declarada, marcando uma interrupção abrupta de todo o setor. De acordo com levantamentos do Conselho Mundial de Turismo e Viagens (WTTC, na sigla em inglês), as perdas desde então são da ordem de US$ 4,5 trilhões e 62 milhões de empregos em todo o mundo.

Por trás dos números, há um sem-fim de pessoas com histórias de queda e superação. Trabalhadores de todos os postos, de todos os lugares, como um gerente geral de um hotel de luxo na orla do Rio ou um guia de turismo nos Lençóis Maranhenses, que precisou se reinventar para continuar a sobreviver num dos setores mais afetados pela pandemia de Covid-19.

O maior exemplo de baque econômico causado pela crise sanitária é o do segmento de cruzeiros marítimos. Com quase 300 embarcações paradas no mundo inteiro, as perdas das grandes armadoras ficaram na casa dos US$ 100 milhões em 2020. O prejuízo ainda deve aumentar, com a demora da retomada do setor em grandes mercados, como Estados Unidos e Europa. No Brasil, a temporada 2020/2021 foi cancelada, e ainda não se sabe como será a próxima.

Homem passa em frente a um painel que mostra voos cancelados ou adiados no aeroporto de Denver, no Colorado Foto: Michael Ciaglo / AFP
Homem passa em frente a um painel que mostra voos cancelados ou adiados no aeroporto de Denver, no Colorado Foto: Michael Ciaglo / AFP

Os números também não são nada animadores em outras áreas de atividade do turismo. Em fevereiro, a Fecomércio de São Paulo divulgou um balanço sobre as perdas do setor no Brasil, que retraiu 33% em seu faturamento de 2020 em relação a 2019. As companhias aéreas registraram a maior queda de arrecadação na comparação: 50,8% a menos do que em 2019. Já o segmento de serviços, alimentos e alojamento, onde estão hotéis e restaurantes, tão importantes para a cadeia turística, amargou uma diminuição de 36% de um ano para o outro.

Como dito lá no início, são números que afetam a vida de muitos. Gelson de Aguiar Júnior perdeu o emprego quando realizava o sonho de ser comissário de bordo na Latam. Erika Gomes passou 50 dias presa dentro de um navio no começo da pandemia. Josiel Santos, guia maranhense, viu tudo mudando da noite para o dia. Netto Moreira, à frente de hotel estrelado no Rio, teve de se adaptar. Viviane Yuri, chefe de cabine da Gol, também vive uma nova rotina, agora em terra firme. Marcos (nome fictício de um piloto brasileiro no Oriente Médio) de repente se viu mais no chão do que no céu. A seguir, saiba como estes profissionais do turismo estão enfrentando a maior das crises ao longo do último ano, em depoimentos ao GLOBO.

‘Parece que estou vendo um filme se repetindo’

Gelson de Aguiar Júnior, comissário de bordo

Gelson Aguiar Júnior quando era comissário de bordo da Latam Foto: Acervo pessoal
Gelson Aguiar Júnior quando era comissário de bordo da Latam Foto: Acervo pessoal

Meu último voo foi no dia 22 de março de 2020. Eu havia começado a trabalhar como comissário de bordo da Latam em novembro de 2019, depois de muitos meses de preparação e cursos. A sensação era de sucesso total. A pandemia para mim foi uma puxada de tapete no sonho de trabalhar na aviação.

No começo de março, o clima já era de preocupação a bordo, até que veio a licença de três meses. No final desse período, fui efetivamente desligado da empresa. Foi aí que caiu a ficha. Naquela época, eu estava voando muito, de quatro a cinco dias direto, com dois de folga. Mas conheci muitos lugares e estava feliz. Quando voltei para a casa da minha família, em Campina Grande do Sul, na Grande Curitiba, até achei bom, uma sensação de férias. Depois de um mês e meio, porém, começou a bater o desespero, e com a demissão a tristeza veio forte.

No total, fiquei 11 meses em casa. Mas tive muito trabalho ajudando a minha família, que também tentava se virar na crise. Nesse tempo todo vivi do seguro desemprego, no valor mais baixo, até o começo deste ano.

Continuei estudando e quero voltar a voar. Mas preciso ter outras alternativas. Há pouco mais de um mês, consegui um emprego num hotel. Mas, nesta semana, com a nova onda da pandemia, ficamos sem hóspedes e ganhamos folgas. Meu chefe me acalmou, mas não tem como não ficar preocupado. No mesmo mês, o mesmo medo. Parece que estou dentro de uma bolha que não se rompe. Ou vendo um filme se repetindo.

‘Estamos vivendo uma vida de #tbt, uma vida de lembranças’

Erika Gomes / tripulante de navios de cruzeiro

Erika Gomes, que foi assistente da diretoria de entreteninemento nos cruzeiros da Pullmantur antes da pandemia Foto: Acervo pessoal
Erika Gomes, que foi assistente da diretoria de entreteninemento nos cruzeiros da Pullmantur antes da pandemia Foto: Acervo pessoal

Eu estava a bordo do navio Soberano, da Pullmantur. Meu contrato terminava em 15 de março, quando eu desembarcaria em Lisboa, para três meses de férias. Meu último porto no Brasil foi em 4 de março. Quando chegamos à Europa, já estava tudo fechado. Passamos alguns dias navegando sem destino, até que conseguimos descer todos os passageiros em Cádiz, na Espanha. Mas nós, tripulantes, ficamos 50 dias a bordo. Desses, oito dias navegando sem destino e 40 atracados em Málaga. Não faltou comida nem internet, mas ficamos trancados esperando autorização para sair e voltar para casa. Tive muito medo, não sabia nem se ia chegar viva em casa.

Estou na casa dos meus pais , em Praia Grande ( litoral de São Paulo ) desde 4 de junho, em isolamento quase total, e vivendo do dinheiro do meu último contrato. Sempre bate uma saudade do mar, de conhecer gente nova e de lugares diferentes. Agora o que temos é uma vida de #tbt, uma vida de lembranças. Acho que tenho lidado com esse período bem porque comecei a procurar ajuda psicológica ainda durante a quarentena no navio. Sabia que isso poderia pegar de forma muito agressiva.

Depois de 12 anos trabalhando em navios, e tendo chegado a assistente da diretoria de entreteninemento, tive que me reinventar. Fiz cursos, como de marketing digital, e comecei a usar as redes sociais para falar sobre a vida a bordo. Também já fui selecionada para três companhias nas quais nunca trabalhei, que podem me chamar para mais testes quando voltarem a navegar. Tenho esperança na recuperação do setor, e de que, quando tudo isso passar, vai ter bastante emprego. Mas o fato de ser brasileiro pode atrapalhar, pelo descaso que vem sendo mostrado para todo o mundo.

‘Sem saber, transportei a própria vacina que tomei dias depois’

Marcos (nome fictício) / piloto de avião no Oriente Médio

Aviões da Delta estacionados num pátio do Aeroporto Internacional de Birmingham-Shuttlesworth, no Alabama, em março de 2020, no começo da pandemia do coronavírus Foto: Elijah Nouvelage / Reuters
Aviões da Delta estacionados num pátio do Aeroporto Internacional de Birmingham-Shuttlesworth, no Alabama, em março de 2020, no começo da pandemia do coronavírus Foto: Elijah Nouvelage / Reuters

Vi que a crise da Covid-19 era mesmo séria quando minha escala de voos foi completamente cancelada do dia para a noite. De repente, me vi 20 dias fechado em casa, sem saber o que esperar do futuro. Na aviação, vivemos em estágio de crise constante, mesmo quando está tudo bem. Mas esta é, sem dúvida, a maior crise da história da aviação, e não dá para imaginar como será o seu fim.

Desde o início da pandemia, o clima entre os funcionários é de apreensão. Mesmo aqui, no Oriente Médio, onde as companhias aéreas são mais robustas do que na maior parte do mundo, houve muita demissão e cortes de salário para quem ficou. A preocupação de perder o emprego, que eu nunca tive aqui, agora é constante.

Depois dos 20 dias em casa, voltei a voar, num ritmo bem menos intenso. Foi um momento tenso, porque os pilotos, quando voltam de férias, sempre voltam mais “frios”, mas são ajudados pelo colega que já estava voando. Agora, toda a equipe estava retornando ao mesmo tempo, todo mundo “frio”.

Durante a pandemia, passei a levar mais cargas, mesmo em aviões de passageiros adaptados. Num desses, no voo da Europa, trouxe um carregamento de vacinas, o que me deixou bastante orgulhoso. E comecei a pensar que o vírus se espalhou muito rapidamente por causa da aviação, e que a solução poderia chegar em aviões também.

Semanas depois, fui chamado a me vacinar pelo sistema de saúde da minha cidade e, chegando lá, descobri que era o mesmo lote. Sem saber, eu tinha transportado a vacina que tomaria dias depois.

‘É uma crise que não se pode comparar com nenhuma outra’

Netto Moreira / gerente geral de hotel

Netto Moreira, gerente geral do hotel Fairmont Copacabana Rio de Janeiro Foto: Divulgação
Netto Moreira, gerente geral do hotel Fairmont Copacabana Rio de Janeiro Foto: Divulgação

Em 25 de março fez um ano que fechamos o hotel ( Fairmont, em Copacabana ), inaugurado em agosto de 2019. Vínhamos de um fevereiro de recordes, de receitas fantásticas. Mas já acompanhávamos atentamente as notícias do novo coronavírus e como os hotéis do Grupo Accor na Ásia e na Europa estavam se comportando. Apesar de todas as informações, não era possível saber que essa pandemia iria parar a economia mundial como parou, nem que duraria tanto. Não dá para comparar com nenhuma outra crise.

Foram quase cinco meses de hotel fechado. Nesse período, continuei trabalhando presencialmente. Mas sentia falta de estar em contato com os hóspedes. Na hotelaria, o que nos faz levantar da cama todos os dias é receber as pessoas, e não poder fazer isso é muito difícil. Por outro lado, havia a missão de deixar o hotel pronto para voltar a receber a todos com segurança, com os protocolos dos selos de qualidade adotados pelo grupo, o All Safe e o da Bureau Veritas.

Quando reabrimos, em setembro, nos adaptamos para uma clientela 100% de lazer e de brasileiros, ao contrário do que acontecia antes da pandemia. Apostamos no staycation e nas experiências exclusivas, duas tendências que se fortaleceram no período. E, para reforçar ainda ainda mais nossa relação com a comunidade, desde o começo desta semana abrimos o nosso salão de eventos para ser um posto de vacinação contra a Covid-19. Das mudanças, é a de que tenho mais orgulho. A recuperação do turismo não vem sem a recuperação da saúde.

‘A situação está quase tão ruim quanto no começo da pandemia’

Josiel Santos / guia de turismo

Josiel Santos, guia de turismo nos Lençóis Maranhenses Foto: Acervo pessoal
Josiel Santos, guia de turismo nos Lençóis Maranhenses Foto: Acervo pessoal

Com a ordem de fechar o Parque Nacional dos Lençóis Maranhenses, logo no começo da pandemia, de um dia para outro os turistas sumiram e o dinheiro acabou em Barreirinhas ( no Maranhão ). Até hoje isso é bem visível na cidade, que depende muito do turismo. Ficou difícil para todo mundo aqui. Muito comércio, hotel e agência fechou as portas. Teve gente que voltou para a roça, ou que foi fazer bico de outra coisa, como ajudante de pedreiro. Eu mesmo, por muito tempo, fui ajudar na loja da minha irmã, que continuou funcionando durante a pandemia. Muita gente teve que viver de auxílio emergencial.

Quando eu não estava na loja, eu ficava muito tempo em casa. Também passei bastante tempo na casa dos meus pais, na zona rural, o que me ajudou a desestressar, por ficar perto da natureza, tomar um banho de rio. Mas uma coisa que não superei até agora foi a falta de contato mais próximo com os turistas. A parte de que mais gosto no trabalho é a troca de experiência com os visitantes. Antes, havia muito passeio de sete dias pela região, que permitia conhecer melhor as pessoas.

O parque reabriu no começo de junho, bem a tempo da nossa alta temporada. Mas, depois de uns meses bem agitados, o movimento voltou a cair. Hoje, está quase tão ruim quanto no começo da pandemia, por mais que o parque ainda esteja aberto. Voltamos a trabalhar muito desconfiados, com medo de pegar o coronavírus. Os turistas que vêm hoje são mais conscientes, mas no começo muitos não respeitavam as regras. Com alguns, a gente tinha que brigar para que colocassem a máscara.

‘Agora, valorizam mais nossa função principal, como agentes de segurança’

Viviane Yuri / comissária de bordo

A comissária de bordo Viviane Yuri, que está há 19 anos na Gol, onde é chefe de cabine Foto: Acervo pessoal
A comissária de bordo Viviane Yuri, que está há 19 anos na Gol, onde é chefe de cabine Foto: Acervo pessoal

Por volta de 20, 22 de março, eu estava cumprindo uma escala de trabalho com rotas domésticas, que terminaria num voo internacional, com pernoite em Orlando. Mas acabei ficando em Brasília mesmo, porque a Gol tinha acabado de suspender a operação internacional e começou a reduzir bastante os voos dentro do país. Foi o começo da pandemia para mim, porque não sabíamos como a empresa iria reagir ou se haveria demissões.

Passamos de mais de 700 voos para apenas 50 por dia. Não cheguei a parar totalmente, mas minha carga de trabalho diminuiu muito, de cerca de 80 horas de voo mensais para sete horas. Com isso, cheguei a ficar 40 dias em casa, algo que nunca havia imaginado. Nem nas férias. Não achei ruim, porque pude fazer ajustes em casa para os quais eu nunca tinha tempo. Mas dava muita saudade das viagens e de poder aproveitar as escalas passeando ou curtindo uma praia. Agora, entre um voo e outro, passo a maior parte do tempo no quarto do hotel.

Voar durante a pandemia é uma mistura de sentimentos. Era triste ver aeroportos como Congonhas e Guarulhos vazios, e havia uma sensação de alívio quando os voos voltaram a aumentar, entre agosto e setembro. Há a preocupação em se preservar, mas nos sentimos seguros, seguindo os protocolos corretamente, e cuidando para que todos a bordo se protejam. Aliás, durante a pandemia, os passageiros passaram a olhar o comissário mais pelo que realmente somos, agentes de segurança. Se peço a um passageiro para colocar a máscara, não é por eu ser chata, mas porque a saúde de todos depende disso.