Por que estou virando vegetariano (bem devagar)

20/03/2019

Foto: Torresigner / Getty Images

 

Minha mulher não come polvo. Há uma década ela tomou contato com uma série de pesquisas científicas que mostravam uma inteligência acima da média nesses moluscos e resolveu que não compactuaria com o assassinato de animais que podem ter algum tipo de senciência, ou consciência de si.

Essa restrição alimentar acaba de ser vingada por um filósofo australiano, que construiu um argumento convincente, embora sem fanatismo, em favor da capacidade mental desses moluscos.

Peter Godfrey-Smith é professor da Universidade de Sydney e mergulhador esportivo. Em décadas de mergulhos, ele colecionou interações com polvos e chocos (ou sépias, um primo próximo das lulas) que o levaram à forte desconfiança de que esses animais invertebrados – cujo último ancestral comum com os seres humanos viveu 600 milhões de anos atrás – são, em alguma medida, seres de inteligência complexa. Em um livro recém-lançado no Brasil, o ótimo Outras mentes: O polvo e a origem da consciência (Todavia, 2019), o australiano junta relatos anedóticos, toneladas de pesquisas científicas e uma boa dose de reflexão para se aventurar na maior das questões da filosofia, a origem da mente, da senciência e da inteligência.

Godfrey-Smith argumenta que os polvos e as sépias são um experimento independente da evolução na construção de mentes. “Eles são, provavelmente, o mais perto que chegaremos de um alienígena inteligente”, escreve. Os moluscos cefalópodes tomaram um caminho totalmente diferente do dos vertebrados para desenvolver um sistema nervoso complexo: o meio bilhão de neurônios dos polvos se distribui entre os tentáculos e num “cérebro” que fica em volta da garganta do animal. Cada um dos oito braços do polvo tem um comando central, por assim dizer, mas tem também uma boa dose de autonomia. Em certa medida, é como se os tentáculos tomassem algumas decisões sozinhos.

O livro não superestima as habilidades cognitivas dos cefalópodes, mas traz relatos fascinantes coletados por cientistas sobre o que esses animais são capazes de fazer. Eles têm habilidade de explorar situações novas e adaptar-se a elas; são aparentemente capazes de reconhecer pessoas (um choco gigante cativo num laboratório da Nova Zelândia tinha o hábito de esguichar água em qualquer cara nova que aparecesse por lá, sinal de que sabia quem eram seus tratadores); têm boa noção de causa e efeito (em alguns casos, aprendem a “apagar a luz” do aquário ao esguichar água na lâmpada e causar um curto-circuito); e, em alguns casos, fazem birra (uma bióloga nos EUA relata o caso de um polvo que esperou que ela passasse na frente do seu tanque para devolver a ela um petisco de que não gostava).

Para Godfrey-Smith, algumas características evolutivas dos cefalópodes, como o fato de eles serem predadores e presas e terem tentáculos para manipular o ambiente podem ter favorecido o surto de multiplicação de neurônios. A evolução dos olhos desses moluscos, estruturados de maneira semelhante ao humano, ajuda a compor um quebra-cabeça de animais que são sencientes mesmo que não sejam inteiramente conscientes, ou seja, mesmo que não tenham um “discurso interno” ou a capacidade de refletir sobre o que é ser um polvo. Emprestando uma metáfora das israelenses Eva Jablonka e Simona Ginsburg, o filósofo australiano argumenta que a evolução da consciência nos animais passou de um “ruído branco” para uma mente complexa e plenamente consciente. Os polvos, com seus braços pensantes, e as sépias, que além de tudo parecem enxergar com a pele, transcenderam o “ruído branco”.

O livro de Godfrey-Smith é apenas um caso recente do cerco que a ciência vem fechando às pessoas que, como eu, têm prazer atávico numa picanha sangrenta ou num hambúrguer fumegante – e, ultimamente, até mesmo num inocente anel de lula. Por razões éticas, ambientais ou de saúde, comer carne é um hábito humano fadado ao mesmo destino de outras más ideias, como fumar folhas secas de tabaco e escravizar outros seres humanos. Essa transição provavelmente vai levar muito tempo. Mas não é impensável supor que, no futuro, todos seremos mais ou menos vegetarianos.

Na coletânea de ensaios Ciência na alma (Companhia das Letras, 2018), o evolucionista britânico Richard Dawkins explica como os valores humanos, como a cordialidade com amigos e a hostilidade a estranhos, são derivados do nosso passado evolutivo. Mas mostra também que temos a capacidade de nos rebelar contra o que ele chama de “tirania dos textos” – sejam os ditames de livros sagrados, como a Bíblia, sejam as compulsões programadas no nosso cérebro pelo livro de quatro letras do DNA.

Ele invoca em um dos ensaios a chamada Moral Mutável, a capacidade da sociedade humana de produzir ao longo do tempo mudanças no que é moralmente aceito. E encerra com uma provocação: para onde vai o arco moral nas próximas décadas e séculos? Que comportamento é visto como algo normal hoje, mas que os séculos futuros verão com a mesma repulsa com que vemos o tráfico de escravos? Para Dawkins, o candidato óbvio é o abate de gado para consumo humano.

Em escritos anteriores, Dawkins argumentou contra o que chama de “mente descontínua”. Se é verdade (e é) que todas as criaturas vivas são produto da seleção natural, que opera num contínuo e não em saltos, então não há sentido em atribuir um valor especial à vida humana em contraposição a gorilas, chimpanzés e outros grandes primatas, que divergiram dos humanos muito recentemente no tempo e que têm capacidades cognitivas muito parecidas com a nossa. Fazer isso seria “especismo”, um tipo de racismo contra outras espécies.

Um corolário desse raciocínio é que, no fim, a decisão sobre quais animais seria moralmente aceitável sacrificar é arbitrária e, portanto, um ato cotidiano de “especismo”. Os mantras ridículos aos quais eu ainda me apego – como “bacon é vegetal” – são injustificáveis sob esse ponto de vista.

Quem não se convenceu pelo argumento ético/ evolutivo pode pensar no quanto seu consumo de carne atrapalha o futuro de seus filhos ou o seu próprio. A produção de proteína animal é o principal fator de destruição de ecossistemas do mundo e um dos maiores usuários de água doce. No Brasil, a pecuária responde pela maior parte do desmatamento na Amazônia, além de ser o principal emissor de gases de efeito estufa do país – 71% das nossas emissões vêm da atividade agropecuária, em sua imensa maioria ligadas ao metano produzido pelo rebanho bovino e ao desmatamento para a formação de pastagens. Ruim para o ambiente, ruim para a saúde: o consumo de carne vermelha também está diretamente relacionado ao aumento do risco de doenças cardiovasculares e vários tipos de câncer.

Em fevereiro, o periódico científico The Lancet publicou um grande relatório elaborado por uma comissão de 37 especialistas de 16 países sobre “Comida no Antropoceno”. O documento conclui, com base em uma extensa revisão de literatura científica, que os sistemas produtivos e as dietas humanas precisam mudar radicalmente nos próximos 30 anos se quisermos alimentar de forma saudável 10 bilhões de pessoas sem terminar de estourar a Terra no caminho – como viemos fazendo com muita destreza até aqui. Isso passa por uma redução dramática no consumo de carne vermelha, da ordem de 50%. A dieta de referência da comissão, apelidada de Dieta de Salvação do Planeta, prescreve o consumo de no máximo 14 gramas de carne bovina por dia – o equivalente a um bife de 100 gramas uma vez por semana – e o aumento do consumo de frutos secos, como nozes e castanhas, e frutas. Não se trata de vegetarianismo estrito, mas de algo que vem sendo chamado de “flexitarianismo”.

Quem não consegue largar o churrasco tem boas razões evolutivas para isso, porém. Elas foram apresentadas no começo do século pelo primatólogo inglês Richard Wrangham, da Universidade Harvard – que, ironicamente, não come carne de nenhum mamífero. Ao observar o tempo que gorilas e chimpanzés passam mastigando comida (de seis a oito horas por dia) e ao se dar conta de que o salto cognitivo humano data de depois do controle do fogo pelo Homo erectus, há 1,8 milhão de anos, Wrangham lançou uma hipótese ousada: depois que passaram a cozinhar seus alimentos – carne e tubérculos -, os hominídeos conseguiram ingerir a quantidade de calorias necessária e passaram a ter tempo livre para sustentar um estilo de vida complexo.

A hipótese foi confirmada de forma espetacular pela neurocientista brasileira Suzana Herculano, hoje na Universidade Vanderbilt, nos EUA. Em seu laboratório na Universidade Federal do Rio de Janeiro, Herculano desenvolveu uma técnica que permite contar neurônios, e fez um grande estudo comparado de cérebros de vários animais. Ela concluiu que os humanos têm o maior número de neurônios no córtex cerebral de todo o reino animal. E jamais conseguiriam obter energia para sustentar essa massa cinzenta toda não fosse pelo consumo de alimentos cozidos. A história completa está contada em seu livro The Human Advantage (MIT Press, 2016), publicado no Brasil no ano seguinte como A vantagem humana. O churrasco, portanto, é parte importante daquilo que nos fez humanos. Compreensível que seja um hábito difícil de largar.

Ocorre que DNA não é destino. Ainda que os seres humanos sejam assassinos por natureza, também são, como pontuou Richard Dawkins, a única espécie capaz de rebelar-se culturalmente contra ela. As evidências de que nosso consumo de carne causa sofrimento desnecessário a milhões de animais todos os dias e ajuda a destruir a habitabilidade da Terra merece, mais do que uma pausa para reflexão, uma ação decidida. Para esperança de carnívoros inveterados, essa mesma capacidade de rebelião está nos dando avanços rápidos na produção de carne “sintética”, cultivada em laboratório.

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Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como NatureScientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

 

Claudio Angelo

Claudio Angelo nasceu em Salvador, em 1975. Foi editor de ciência do jornal Folha de S.Paulo de 2004 a 2010 e colaborou em publicações como Nature, Scientific American e Época. Foi bolsista Knight de jornalismo científico no MIT, nos Estados Unidos. Lançou, em 2016, pela Companhia das Letras o livro A espiral da morte, sobre os efeitos do aquecimento global, ganhador do Prêmio Jabuti na categoria Ciências da Natureza, Meio Ambiente e Matemática.

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